«O presente estaria cheio de todos os futuros, se já o passado não projetasse sobre ele uma história . André Gide»
A minha avó paterna, mulher letrada, e politizada, numa época em que as meninas se educavam a preferir o bordado à informação da actualidade política, leu o DN até que a doença lhe matou os olhos, antes de lhe parar o coração. Leu-o para si, para os nove filhos, e para todos os que, sentados à sua volta, lho vinham ouvir, e com ela comentar. Eram outros tempos, tempos em que a vizinhança ainda não se tinha reduzido aos frios e formais cumprimentos de elevador, ou de porta de garagem. O meu pai, fiel seguidor da devoção materna, e desde o nascimento habituado a ouvir, manusear e ler o DN, nunca deixou de comprar o jornal, mesmo numa fase da sua vida em que este se tornou razão única e exclusiva do esforço de uma saída à rua, tão dificultada pela tremura do corpo, em que apenas a mente conseguia manter, intocado, todo o seu brilho. Legou esse hábito de leitura diária à família, terá com ele influenciado a apetência pela intervenção social e política dos agora jovens adultos, do nosso pequeno núcleo familiar. É, pois, por tradição, que o meu dia não se completa, sem, pelo menos, uma vista de olhos pelo DN. Hoje, ao lê-lo, estranhei as novidades. Serão estas sinais dos tempos, e fruto da necessidade, mas, por um período razoável, ser-me-ão difíceis de aceitar. É na cada vez mais difícil aceitação destas fracturas dos hábitos do quotidiano, que nos apercebemos que o nosso tempo vai ficando, em processo acelerado, fora deste novo, mas ainda assim nosso, tempo. Neste salto para a modernidade, que o DN hoje deu, senti, de forma particularmente intensa, a minha proximidade com a minha avó e o meu pai, sabendo que quando, daqui por uns anos, as minhas "crianças" estiverem a escrever algo parecido, o ciclo da vida se terá cumprido. E seguirá. O DN também, espero.
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