Menosprezar o discurso do Presidente Cavaco Silva, remetendo-o para o saco de caridosas palavras de conforto e simpatia, mais ou menos inconsequentes, e atribuir-lhe como intenção primordial esquivar-se a uma contenda com um parlamento apanhado em falta, ou a entalar o governo pela má performance na gestão político-económica deste país, que três relatórios fizeram questão em evidenciar, é continuar a ver a árvore e não ver a floresta, pior ainda, é um exercício de estultícia, que só desqualifica quem se dá ao trabalho de exercitar tal raciocínio. Mesmo quanto àqueles que, não se atrevendo à crítica feroz, relegaram o discurso para a categoria de uma peça elaborada com o pouco nobre objectivo de agradar a todos, pretensão que, segundo tão caridosas almas, o Presidente teria tido relativamente a esta sua primeira intervenção de fundo após a posse, só posso dizer que acho que estão a imitar, magnificamente, a avestruz.
Dos centos de metros de comentários que sobre o assunto se têm produzido, não foi por acaso que me socorri da frase mais reveladora do que escreve Medeiros Ferreira hoje no DN, para titular estas notas. Fi-lo porque, num texto que me pareceu um mortal à rectaguarda, empranchado, em que Medeiros Ferreira parece querer vir salvar a honra de uma esquerda estupefacta pelo terreno pelo qual o Presidente se aventurou, logo aquela esquerda para quem as questões da pobreza dos verdadeiramente pobres e da exclusão dos verdadeiramente excluídos são pedras de toque esquecidas na trituradora da propaganda e do interesse político menos transparente dos actuais gestores da coisa pública, é essa frase que sintetiza, de forma lapidar, quer as razões que levaram o Presidente a dizer o que disse, quer o desafio que lançou à sociedade portuguesa, toda ela, para resolver esta questão essencial para a nossa democracia. Essencial, sim, porque, «o sonho de um País livre e democrático é indissociável da ambição de uma sociedade mais desenvolvida e com mais justiça social» e, se «muito progredimos na modernização da economia e na afirmação de novos estilos de vida, ficámos muito aquém na concretização dessa ambição de uma sociedade com maior justiça social», não sendo « moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a quem viveu uma vida inteira de privação». As palavras são do Presidente no seu discurso, mas a esses comentadores com pendor suicida para a irrelevância, eu pergunto: quantos dos homens de Abril as renegariam, então, como o móbil da sua acção? Quantos deles as enjeitariam, hoje, como despiciendas, face a um adquirido de bem-estar e desenvolvimento, que a liberdade de Abril trouxe? Quantos desses fazedores da revolução sem sangue podem não subscrever as preocupações deste Presidente que, em tão sinalado dia, foi ao cerne do que não fomos, ainda, capazes de fazer com a liberdade que conquistámos, ou recebemos?
Reli o discurso do PR e, quanto mais o releio, mais simples e clara lhe encontro a mensagem, mas também mais dura e acusatória a interpreto. Porque ela é, em simultâneo, um forte abanão às consciências de todos nós, e ele não se exclui, pelas oportunidades que desperdiçámos, e um lancinante apelo, para que este desperdício não volte a repetir-se.
«É, seguramente, aos gestores do momento que cabe decidir os caminhos, mas é onde esses caminhos nos levam que lhes hão-de dar, ou não, o reconhecimento das novas gerações. Fomos capazes de concretizar o sonho de um Portugal livre e mais próspero, mas estamos longe de podermos realizar a aspiração de maior justiça social. Os Portugueses esperam dos políticos, que livre e democraticamente elegeram, que estejam à altura dessa exigência, que se empenhem em dar uma nova esperança aos mais desfavorecidos da nossa sociedade, que cooperem no sentido de mais facilmente poderem superar as dificuldades e naturais divergências ideológicas.»
Se nestas palavras do Presidente não formos capazes de ver autocrítica, nem crítica, nem avisos, não admira que não sejamos capazes de ver no discurso mais do que irrelevantes considerações e um desafio para um compromisso cívico para a inclusão social destinado ao fracasso. Se assim for, simplesmente não estamos à altura do Presidente que temos. Se assim for, eu sou dos que acredita que só nos resta um caminho: crescermos como povo, para nos pormos ao seu nível. E para não sucumbirmos, uma vez mais, à espuma dos dias.
Dos centos de metros de comentários que sobre o assunto se têm produzido, não foi por acaso que me socorri da frase mais reveladora do que escreve Medeiros Ferreira hoje no DN, para titular estas notas. Fi-lo porque, num texto que me pareceu um mortal à rectaguarda, empranchado, em que Medeiros Ferreira parece querer vir salvar a honra de uma esquerda estupefacta pelo terreno pelo qual o Presidente se aventurou, logo aquela esquerda para quem as questões da pobreza dos verdadeiramente pobres e da exclusão dos verdadeiramente excluídos são pedras de toque esquecidas na trituradora da propaganda e do interesse político menos transparente dos actuais gestores da coisa pública, é essa frase que sintetiza, de forma lapidar, quer as razões que levaram o Presidente a dizer o que disse, quer o desafio que lançou à sociedade portuguesa, toda ela, para resolver esta questão essencial para a nossa democracia. Essencial, sim, porque, «o sonho de um País livre e democrático é indissociável da ambição de uma sociedade mais desenvolvida e com mais justiça social» e, se «muito progredimos na modernização da economia e na afirmação de novos estilos de vida, ficámos muito aquém na concretização dessa ambição de uma sociedade com maior justiça social», não sendo « moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a quem viveu uma vida inteira de privação». As palavras são do Presidente no seu discurso, mas a esses comentadores com pendor suicida para a irrelevância, eu pergunto: quantos dos homens de Abril as renegariam, então, como o móbil da sua acção? Quantos deles as enjeitariam, hoje, como despiciendas, face a um adquirido de bem-estar e desenvolvimento, que a liberdade de Abril trouxe? Quantos desses fazedores da revolução sem sangue podem não subscrever as preocupações deste Presidente que, em tão sinalado dia, foi ao cerne do que não fomos, ainda, capazes de fazer com a liberdade que conquistámos, ou recebemos?
Reli o discurso do PR e, quanto mais o releio, mais simples e clara lhe encontro a mensagem, mas também mais dura e acusatória a interpreto. Porque ela é, em simultâneo, um forte abanão às consciências de todos nós, e ele não se exclui, pelas oportunidades que desperdiçámos, e um lancinante apelo, para que este desperdício não volte a repetir-se.
«É, seguramente, aos gestores do momento que cabe decidir os caminhos, mas é onde esses caminhos nos levam que lhes hão-de dar, ou não, o reconhecimento das novas gerações. Fomos capazes de concretizar o sonho de um Portugal livre e mais próspero, mas estamos longe de podermos realizar a aspiração de maior justiça social. Os Portugueses esperam dos políticos, que livre e democraticamente elegeram, que estejam à altura dessa exigência, que se empenhem em dar uma nova esperança aos mais desfavorecidos da nossa sociedade, que cooperem no sentido de mais facilmente poderem superar as dificuldades e naturais divergências ideológicas.»
Se nestas palavras do Presidente não formos capazes de ver autocrítica, nem crítica, nem avisos, não admira que não sejamos capazes de ver no discurso mais do que irrelevantes considerações e um desafio para um compromisso cívico para a inclusão social destinado ao fracasso. Se assim for, simplesmente não estamos à altura do Presidente que temos. Se assim for, eu sou dos que acredita que só nos resta um caminho: crescermos como povo, para nos pormos ao seu nível. E para não sucumbirmos, uma vez mais, à espuma dos dias.
* passagem retirada do artigo de opinião de Medeiros Ferreira, no DN.
4 comments:
Só contam os homens de Abril? E as mulheres, não? Eu, até tenho para mim que, se as mulheres mandassem o país não tinha batido no fundo.
Caro Crack
O seu blog faz parte do meu roteiro de navegação. Gosto de o visitar. Um dos motivos é o de encontrar nele largos motivos de desacordo em matéria de apreciação política e isso, para mim, é estimulante. Ultimamente o discurso do nosso Presidente foi objecto de apreciação por muitos membros de todo o nosso espectro político. O meu caro ficou visivelmente agradado com a qualidade do discurso e isso transpareceu na forma e na quantidade como reagiu a ele e às reacções que ele provocou nas nossas Esquerdas.
Eu também fiquei sensibilizado e, mesmo sendo o nosso Presidente um Personagem que sempre me desagradou, e me provoca, confesso, alguns anti-corpos, ao ver os seus posts, resolvi ler e rever o video do discurso.
Gostava de lhe deixar algumas notas, concordantes umas, dissonantes outras.
O discurso está de facto muito bem concebido, do ponto de vista formal e do conteúdo. Começa por fazer um discurso sobre discursos passados e/ou possíveis, que revela um estilo que eu não reconhecia no nosso Presidente. Gostei bastante dessa parte.
Passa depois a um "auto-intitulado" posteriormente, diagnóstico, que eu penso mais ter sido um misto de constatação de sintomas e etiologias na nossa sociedade, sobre questões particularmente importantes. Foi surpreendente a escolha central, mas não única, da questão da desigualdade social enorme que existe e se cava na nossa sociedade. Surpreendente até pelo uso de certas palavras que são geralmente usadas, em exclusivo, pelas Esquerdas. Refiro-me à crítica da desigualdade. Eu sei que o caro Crack não gosta do uso da grelha de análise Direita/Esquerda, mas eu uso-o e penso ser este até um factor de distinção entre Esquerda e Direita: usar ou recusar esta grelha.
Penso no entanto, que uma certa leitura de esquerda feita por alguns, termina mesmo aqui, pois a partir daí, o discurso, principalmente quando analisa causas e propõe, por fim, uma terapêutica revela aquilo que é mais caro a uma Direita e a distingue da Esquerda. Eu explico-me. Discerni em variadas vezes a explicação dos problemas por razões centradas no indíviduo (como foi o caso da referência ao desemprego) ou o apelo ao indivíduo ou a associações particulares (no caso do compromisso cívico) na resolução dos problemas apontados. Não será de estranhar que sectores da Esquerda como é o caso da CGTP ou do PCP tenham falado numa interpretação caritativa ou do esquecimento da responsabilidade ou participação de certos e importantes poderes económicos que, mesmo em tempo de crise, vão de vento em popa. Não é de admirar. O que uns acham relacionado ou como causa - a existência de muito ricos ao lado de excluídos - outros acham um epifenómeno perfeitamente evitável. Evitável e resolúvel através de compromissos que generalizam responsabilidades por todos, desde potentados económicos até a pessoas comuns. Eu, não pretendendo desvalorizar a importância da solidariedade individual e das organizações voluntárias, penso que elas, podendo mitigar o sofrimento de muitos, não o conseguem resolver pois a sua resolução está primáriamente na ordem da Política. Política como o espaço público onde se assumem os rumos, as direcções e as responsabilidades. Por quem as tem. Por quem as teve. Por quem as terá.
O nosso Presidente fez um apelo à participação de todos, participação que transcenda as diferenças ideológicas. Também aqui penso que um homem inteligente como o nosso Presidente não poderia ignorar que o tema que abordou é daqueles que não podem estar acima da ideologia. Também aqui, onde a Direita vê a necessidade de ignorar diferenças a Esquerda vê que essas diferenças são razões de ser dos problemas.
Um apontamento final sobre a citação de Ruy Belo. Este é um poeta que muito aprecio e que gosto de ver exposto ao grande público. Achei no entanto que a citação demonstrou o que um homem de direita buscaria em Ruy Belo para dar uma mensagem de Abril.
De forma não coincidente tinha eu escolhido para evocar Abril num blog que desenvolvo o seguinte excerto de Ruy Belo:
"DESENCANTO DOS DIAS
Não era afinal isto que esperávamos
não era este o dia
Que movimentos nos consente?
Ah ninguém sabe
como és ainda possivel poesia
neste país onde nunca ninguém viu
aquele grande dia diferente"
Perdoe-me a extensão do comentário. Afinal o blog, interessantíssimo a vários níveis, é seu. Prometo tentar não abusar das suas caixas de comentários.
Caro Henrique Santos
Registo, com apreço, a atenção que este blogue lhe merece. Sinta-se à vontade para comentar, em extensão e com frequência, já que, em minha opinião, os comentários acrescentam, e não retiram, valor a qualquer um destes espaços.
Sobre a discordância, concordo consigo, é estimulante, mas, depois do que ambos já escrevemos, seria estéril insistir, quer na discordância, quer nos pontos de acordo, até porque tudo depende do olhar com que observamos o mundo à nossa volta. «Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.».Alberto Caeiro estava certo.
Cara Susana, comecei por pensar que estava certa, com este seu comentário, que cometera eu o erro de ir contra o actual, e feminíssimo, politicamente correcto, mas nem lamento dizer que, dormindo sobre o assunto, não sinto ter errado, minimamente. Quando penso nos actores de Abril, estes são homens, conhecemos-lhes os nomes e os rostos, os erros e as bravatas, o heroísmo a a visão rasgada. As razões para tal facto? conhecem-se; mas o passado não se muda, à conta das injustas circunstâncias.
Quanto à melhor performance que as mulheres teriam na condução do país, não serei eu que rebaterei tal tese, mas também lhe direi: depende das mulheres.
:))
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