Tuesday, May 02, 2006

As nossas sociedades modernas não podem aceitar o fatalismo das misérias humanas (I)*


Na sonolenta lazeira do feriado dedicado ao trabalhador, com uma calorosa brisa de um começo de manhã fortemente ensolarada a obrigar-me a rever o programa «turístico» do último dia das miniférias, não pude deixar de ir ouvindo o som da televisão que chegava dos fundos da casa e me alertava para que o remanso daquela varanda preguiçosa sobre o rio, mais não era do que uma curta e frágil trégua na espuma revoltosa dos nossos cinzentos dias. A SIC notícias repetia O Eixo do Mal, e os residentes do programa afadigavam-se em convencer-nos, em tom gritado cada vez mais alto, que a nossa crise só eles, iluminados, a percebem em toda a sua extensão, e que se não têm o remédio para a mesma, andam por lá muito perto, tanto que quase acreditamos que se deveria «dispensar» o governo e governar o país a partir dos bitaites que proliferam pelos comentários com que a verborreia televisiva nos matraca. Um parêntesis, só para constatar como é muito divertido ouvir um programa televisivo, sem o ver, porque o ridículo de algumas afirmações, de que a imagem nos distrai, se torna tão evidente, que merecerem-nos um sorriso constitui uma enorme generosidade da nossa parte. Mas adiante.
Um dos comentadores, que, pela voz, não reconheci, falava ainda do discurso de Cavaco Silva na AR e (pelo menos o tom era de seriedade, garanto), com indignada e superior convicção, afadigava-se em demonstrar que a peça mais não é do que um estafado conjunto de banalidades alinhavadas para fugir à agenda dos reais problemas do país, que um PR não poderia ter iludido, em ocasião de tal solenidade e relevância histórica. Admito que tenho a tendência, ao ouvir isto, para desligar e encolher os ombros, pensar que opiniões com esta inconsistência há muitas, que as palavras leva-as o vento, que o tempo se encarregará de demonstrar que…, enfim, as muletas do costume, quando nos confrontamos com o que consideramos banalidades daquele teor. Mas será que é esta a atitude a tomar - continuarmos a ser dóceis consumidores destes comentários que consideramos da treta – o que, no limite, constitui uma extrema arrogância das nossas convicções, face àquilo com que não concordamos? Será que, se fosse esta uma opinião coincidente com a minha, tão rápida e facilmente lhe encontraria a mesma fragilidade argumentativa, a condenaria pela cegueira ao essencial, a remeteria para o baú da reciclagem intelectual? Concluindo que a minha resposta poderia (pelo menos deveria) ser não, dediquei ao assunto algum do meu tempo, e paciência, para no final, confesso desde já, ter ficado «na minha», isto é, pensando o que já pensava (e escrevi aqui) sobre o discurso do Presidente Cavaco Silva. O exercício não foi, contudo, inteiramente estéril.
* passagem retirada do artigo de opinião de Medeiros Ferreira, no DN.

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