Sunday, February 10, 2008

Carnevale di Venezia









Tenho uma recordação muito feliz dos carnavais da minha infância, talvez por isso aprecie a alegria e a descontracção da quadra. Até ao emergir da guerra colonial, em África, onde cresci, havia o hábito dos grandes carnavais, com bailes e concursos de máscaras, para miúdos e graúdos, desfiles carnavalescos animados, tudo numa curiosa, e que hoje seria chamada globalisadora, mistura das tradições portuguesas das batalhas de flores e carros alegóricos, de braço dado com a euforia afro-brasileira da batucada e do samba, vestidos uns em tradicionais disfarces, despidos outros, bem ao sabor dos trópicos, terminando a folia colectiva em monumentais “fubadas”, guerrinhas enfarinhadas, de riso e malandrice, "resolvidas" a refrescante banho de agulheta, com que geralmente se mandavam para casa os foliões.
Durante anos, estranhei a pacatez sisuda e triste da quadra carnavalesca na região de Lisboa, atirando as culpas ao inverno, aos costumes, às gentes mornas, sei lá ao que mais. Depois, quando a reboque das novelas fomos importando os carnavais abrasileirados, domada a pujança do carnaval carioca à nossa idiossincrasia, e dimensionada a festa ao volume do negócio envolvido, nunca tais carnavais me atraíram, talvez porque a imitação nunca me seduz, ou, mais certo, porque a idade já não seria de folia. Os entusiasmos carnavalescos concentraram-se, então, na alegria a dar às minhas crianças, permitindo-lhes viver o palhaço, o pirata, a fada, ou a odalisca dos seus sonhos.
Do espectacular Carnaval do fabuloso Rio de Janeiro bastaram-me sempre as imagens, saboreadas na segurança e no conforto de um sofá em frente do televisor, mas de Veneza apetecia-me uma participação mais vivida, in loco, porque esse magnífico palco que é a cidade dos mil canais pede as roupagens, as poses e as máscaras, que todos identificamos com a "mística" veneziana.

Estive lá este ano e confirmei que Veneza ganha brilho, cor, animação e “alma”, com o Carnaval. Apesar do frio, apesar dos omnipresentes traços da modernidade suja e abusiva, que milhares de turistas sempre deixam atrás de si, umas dezenas de figuras mascaradas bastam para nos transportar a épocas recuadas, a tempos que imaginamos de intriga e mistério, de romances inconfessados e de mortes envenenadas. Veneza é toda Carnaval, das lojas fabulosas às vendas de rua, dos pintores de rostos às figuras mais misteriosas, que se reclinam em cada ponte, ou se escondem nos alpendres dos palazzi fantasmagóricos. Mas, se a magnificência de muitas das fantasias é impressionante, o fulgor e o mistério do Carnaval de Veneza concentram-se, sobretudo, na pose hirta e no silêncio pesado das figuras que se escondem atrás da tradicional máscara veneziana, esses rostos irreais, mas belíssimos na sua imobilidade de expressão, que dão aos olhos de quem sob eles se oculta um mundo de intencionalidade e conivência.
Quase acreditamos que o rosto da doce Julieta que se esconde nas arcadas da Piazza San Marco será tão belo como a sua máscara, ou que o Casanova imponente que nos fita, silencioso, na Ponte Degli Scalzi terá, realmente, a majestosa face que a sua austera máscara revela. Nos mascarados de Veneza impressiona a reclusão evidenciada no silêncio, na pose contida, na encenação de cada movimento, seja quando deambulam, exibindo-se, seja quando posam para os turistas ávidos de imagens para mais tarde recordarem. Sendo, por via da degradação e desertificação dos seus mais emblemáticos edifícios, a Veneza dos turistas já uma cidade cenográfica, não surpreenderia a institucionalização de uma permanente e gigantesca masquerade.








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