Wednesday, November 28, 2007

Colonialismo (I)

A leitura desta opinião de Licínio Lima remeteu-me para a memória dos últimos anos antes do 25 de Abril, mais correctamente, talvez, para o crescendo de vozes contra a guerra do ultramar, que se viveu no último ano antes da revolução de Abril. Vivi essa época com a intensidade de sentimentos que só se tem aos vinte anos, mas também com o distanciamento do real que alguns jovens, criados na pacatez de uma vida familiar de que está ausente a tragédia da guerra, conseguem ter. E, no entanto, posso dizer que sofri a guerra de muito perto, se bem que nenhum dos meus familiares fosse, à época, militar. E vivi essa guerra por dentro, porque estava no teatro da guerra, e porque grande parte dos meus amigos se fardou no intervalo dos bailaricos da nossa adolescência e dos cursos que nos deviam preparar a idade adulta. Alguns marcaram encontro com as balas dos que lutavam pelo que julgavam ser a sua liberdade, outros desfardaram-se sem traumas de maior, outros carregam até hoje os fantasmas dessa chamada às armas. Quem viveu esses tempos sabe que a guerra do ultramar se tinha tornado um pesadelo para as famílias dos mancebos, e para alguns destes também. Mais do que o amor à liberdade, mais do que as convicções democráticas, mais do que o respeito pelo direito dos povos colonizados à sua independência (tenham dito o que disseram depois dos cravos), a raiz da contestação destas famílias com filhos para dar à guerra era o medo, o medo avassalador da morte, ou de pior sorte, para os seus jovens. E mais ainda do que nestes, foi nas famílias que fermentou a revolta, que se instalou a resistência, que se clamou pela liberdade, a solidariedade e a democracia, mas tão só para abafar os sons do medo. A este não chamo eu cobardia, como fez o moribundo Franco, verbalizando o que outros povos de nós pensaram, e pensam, até hoje, porque chamar-lhe medo basta, para nos definir enquanto povo que é mais fado do que epopeia. Sempre percebi as famílias e o seu medo, sempre respeitei aqueles que estimam a sua vida acima de decisões que, a eles alheias, lhes querem encarreirar o destino para um fim trágico, que não escolheram. Percebi o indivíduo e as suas circunstâncias, porque a gesta heróica não é um peso que carregue qualquer um, apenas os visionários, ou aqueles para quem a vida só faz sentido na partilha e na pertença de um bem maior, porque de todos. Mas se alguns como eu compreenderam, e perdoaram a mentira que cobriu a soma dos medos individuais, outros houve que preferiram chamar-lhe liberdade, e confundi-la com um novo Portugal. Foi esse Portugal que não fez Abril por convicção democrática, embora esta possa ter estado presente no coração de alguns dos mais cerebrais militares do MFA. Foi esse Portugal que não fez Abril por querer devolver independência e dignidade aos povos que colonizou, pese embora o direito que a estes assistia, direito tão mal servido pelo discurso hipócrita de alguns corrompidos lateiros dos quartéis, que ficaram como heróis para triste memória colectiva. Foi esse Portugal que derrubou o regime envelhecido, que um também envelhecido Caetano carregava nos pouco convictos ombros, mas esse Portugal era apenas a soma dos muitos que tiveram medo, medo da guerra, medo da morte. Mais de trinta anos passados, podemos escrever isto, assim, aceitando e perdoando, porque ter medo é humano, todos o temos, e até Cristo, na cruz, na sua derradeira demonstração de humana divindade, escolheu o medo, perante a morte terrível, para invocar o Pai, e poder afastar de si tão cruel cálice.
Choca-nos a morte de um jovem português, hoje, numa guerra que não é nossa, mas que é de todos. A guerra dos seus avós também o era, embora, à época, todos preferissem esquecê-lo. E tanto era de todos, que o futuro que então se desenhou vive-se hoje na intolerância que cresceu no mundo, e que é a mãe de todas as guerras, todas nossas, estejamos ou não nelas. Pode lamentar-se Licínio Lima pela falta de evolução do mundo que conhecemos, mas, desde que o mundo é mundo, é mesmo assim, e, por muito que nos custe, vai continuar a sê-lo. Aos portugueses faltou compreendê-lo, então. Espero que as crianças que hoje assistem do pátio da escola ao enterro do jovem soldado tenham a oportunidade de aprender que, apesar da dor, apesar do medo, haverá sempre alguns que cairão, na luta de todos pela humanidade. Os seus avós preferiram não o perceber, com as consequências que sabemos. Detectam-se preocupantes sinais de que os seus pais estão a ser, eles também, conduzidos ao mesmo trilho. Insidiosamente, o medo instala-se, de novo. O fado vinga. A epopeia morreu há muito.

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