Houve um tempo em que o politicamente correcto se chamava hipocrisia social e se limitava à esfera familiar e social das classes mais altas. O bom povo dessa altura dizia na cara e berrava alto e bom som o que lhe inundava a alma e os jornais fervilhavam de queirosianas galhardias. Bons tempos, dirão os saudosistas. Aqueles que, como eu, apenas abominam o politicamente correcto, sobretudo quando acéfalo, podem não ir tão longe, mas têm alguma dificuldade em compreender certas reacções, muito «certinhas», ao resultado do Portugal/França.
Por partes: 1- o Campeonato do Mundo de Futebol é apenas isso, carece de sentido extrapolar, linearmente, a apreciação da prestação da equipa a outras áreas da vida nacional fora da respectiva modalidade; 2 – A selecção portuguesa provou, no Europeu e agora, ao chegar a esta fase do Campeonato, que já atingiu uma craveira que lhe permite ombrear com os maiores, sem complexos e com um domínio técnico inquestionável: 3 – O «feito» desta selecção, neste campeonato, corresponde ao investimento técnico-desportivo e ao nível de profissionalismo exigível, foi meritório e esforçado, a nível individual e colectivo, e alegrou, naturalmente, os adeptos, neste caso, a nação.
Posto isto, e indo ao que interessa: sem cair nos extremos de passar da veneração irracional à mais injusta ingratidão; sem cair na habitual dualidade dos bestiais do sucesso de ontem aos bestas do fracasso de hoje; sem procurar bodes expiatórios, a verdade é que afronta engolir o discurso politicamente correcto do «já foi muito bom chegar aqui», do «há quarenta anos que…», do «devemos estar agradecidos», ah e tal… e por aí fora. E afronta, sobretudo, porque esta é a pior forma de honrar o trabalho desta selecção e do seu treinador.
A verdade é que o nosso objectivo só podia ser um – trazermos o título para casa; se não conseguimos, falhámos; importa, pois, enfurecermo-nos com a derrota, identificar as causas do falhanço e superá-las, a qualquer custo, para sermos bem sucedidos no próximo campeonato. Discursos contentinhos, modestosinhos e caridososinhos, como o que fez Sócrates ontem em frente às câmaras de televisão, são um insulto à selecção nacional e aos portugueses, porque são o melhor caminho para um rebanho que engula, sem balir, simplexes, otas e praces, mas não são, decerto, o caminho que nos levará a sacudir a pobreza endémica que nos limita a inteligência, nos esvazia os cofres e nos corrói a exigência.
A verdade é, e importa enfrentá-la sem falsos pudores, que perdemos com a França à custa dos preconceitos do árbitro, não por falta de mérito nosso no jogo jogado, apesar da qualidade (e, no caso, nunca superioridade) da equipa francesa, que não se discute aqui. A verdade é, e impõe-se aceitá-lo, por muito que custe, que perdemos com a França porque os «grandes» jogam nos relvados, mas também fora deles, e aqui com a passividade e permissividade dos contentados «pequeninos».
Está de parabéns a NOSSA selecção, não porque chegou até aqui, o que era a sua obrigação, mas porque obrigou a França a ter uma vitória mais do que questionável, vergonhosa, até, se pensarmos como era desnecessário que assim tivesse sido. Está de parabéns Scolari, não porque foi capaz de imprimir profissionalismo e alma à selecção, como lhe competia, mas porque foi capaz de, no momento certo (o fim do jogo e derrota com a França), ser lúcido e honesto, e dizer o que havia a ser dito, sem deslocados rancores, ou palacianos rodeios.
E agora? A selecção e Scolari não merecem discursos politicamente correctos, compadecidos agradecimentos, ou ferozes ajustes de contas; merecem, apenas, que lhes exijamos que façam tudo para vencer a Alemanha, como excelentes profissionais que são. Uma selecção de futebol, no caso, esta NOSSA selecção, só poderá «puxar por nós», enquanto povo, se nós deixarmos de a querer puxar para o lodaçal de resignação acomodada em que teimamos em viver. Pelo que se viu, se a lição que Scolari e a sua selecção deram a este país não se perder entre socráticas alarvidades e oportunistas negociatas, no próximo Campeonato do Mundo lá estaremos, mais fortes ainda, para ganhar, dentro do relvado e fora dele, se for preciso. Sem contemporizações.