Sunday, March 19, 2006

Sempre me habituei a ver o meu pai rodeado dos seus livros, dos seus escritos, dos seus cadernos de anotações diárias, com que complementava a sua prodigiosa memória e entretinha os seus dias. Dos muitos anos em que a doença neurológia lhe foi minando o corpo, é à sua vontade inquebrantável, à sua mente brilhante e lucidez inteligente, que vou buscar as mais gratificantes e ternas recordações, pois foi uma lição de vida observar como essa luta por manter intacta a inteligência e a memória demonstrava a dignidade com que enfrentou a doença, mantendo o respeito por si próprio e pelos outros.
Ainda hoje, junto da sua cama, vendo aquele olhar vago que fixava em nós, quis acreditar que, encerrado do seu mundo inerte e silencioso, estava escrevendo histórias de outros tempos, contos, poesias, até uma cantiga, como sempre fazia. Acreditar nisto deu-me uma certa paz, e muita angústia também.

2 comments:

Rui Martins said...

Estou Solidário consigo, caro crack.

Na verdade, nunca saberemos o que se passa na mente de pessoas como o seu pai... Estão enclausurados debaixo de um corpo que já não responde, ou já não serão capazes de pensar, simplesmente?

Pessoalmente, prefiro acreditar na segunda opção. É demasiado doloroso acreditar em qualquer outra.

crack said...

Caro Rui Martins
Obrigado, pelo comentário solidário.
Tem razão, é demasiado doloroso pensar que se sintam sós e impotentes, encerrados em si mesmos e na sua dor. No entanto, sabê-los "vazios", de todo ausentes de si próprios, também é angustiante. Daí o meu dilema, que nunca conseguirei resolver. Procuro, tão só, vivê-lo com a coragem que o amor ao meu pai consegue dar-me.
:))